Recursos repetitivos: sistema firma suas teses

Os julgamentos pelos tribunais superiores revelam uma melhor compreensão do tema, mas é preciso monitorar a evolução do entendimento dos tribunais regionais de primeira instância

Os julgamentos com efeito de recurso repetitivo pelos tribunais superiores, particularmente no Superior Tribunal de Justiça (STJ), têm firmado jurisprudência em uma série de temas relevantes, o que demonstra uma evolução favorável no que diz respeito à melhor compreensão das teses defendidas pelo sistema de Entidades Fechadas de Previdência Complementar. Mas os especialistas lembram que há um longo caminho a ser percorrido, bem como a necessidade de monitorar com atenção a evolução dos repetitivos, mesmo porque há ainda algumas teses complexas à espera de julgamento

Além disso, os consultores jurídicos dizem que é preciso acompanhar com cuidado o entendimento dos tribunais regionais de primeira instância sobre os recursos repetitivos que, embora tenha evoluído, está longe de ser considerado uniforme. O avanço, porém, é inegável. “A legislação processual brasileira tem privilegiado as decisões sobre temas recorrentes que podem repercutir sobre um número grande de pessoas”, observa o advogado especializado Adacir Reis. Além da lei dos recursos repetitivos – lei nº 11.672/2008 – o novo Código de Processo Civil (CPC, instituído pela lei nº 13.105), em vigor desde março de 2015, veio reforçar a cultura dos precedentes junto ao Judiciário brasileiro. Com isso, evita-se que um tribunal precise julgar inúmeras vezes o mesmo tipo de caso. No que diz respeito aos processos que envolvem a Previdência Complementar fechada, o STJ tem sido o maior intérprete da legislação do sistema enquanto o STF recebe apenas os processos que envolvam muito claramente questões constitucionais.

Ao longo dos últimos anos tem havido diversas vitórias para as EFPCs no STJ; mas isso, pondera Reis, “não quer dizer que o jogo esteja ganho porque há questões complexas a serem apreciadas”. De modo geral, entretanto, ele avalia que os recursos repetitivos têm sido observados:

“O quadro é favorável porque há maior homogeneização e compreensão da matéria Previdência Complementar nos tribunais superiores, e mesmo nas instâncias inferiores essa compreensão está começando a melhorar”. Desde 2009, como resultado da edição da lei em 2008, foi institucionalizado o movimento para uniformizar decisões com base em julgamento de recursos repetitivos no STJ e no STF, mas o novo CPC procura fortalecer essa cultura ao definir que os tribunais locais, de primeira instância, também podem uniformizar jurisprudência, explica a advogada Patrícia Linhares, consultora jurídica e integrante da Comissão Técnica Nacional de Assuntos Jurídicos da Abrapp. “Entretanto, ainda não está muito claro como será a condução desses assuntos nos tribunais de primeira instância em todo o país”, aponta Linhares. O novo Código de Processo Civil destaca o conceito de IRDR – Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas e seu intuito é fazer com que as ações já cheguem aos tribunais superiores com uma uniformização prévia, o que ajudaria a reduzir o número de processos nessas instâncias. “Nada mais apropriado, até porque o Brasil tem um contencioso muito ativo. Aqui é muito fácil levar uma ação ao Judiciário. Chegamos ao número de cem milhões de processos, então firmar jurisprudência por meio de julgamentos com efeito de recurso repetitivo é importante”, ressalta Adacir Reis. Para lidar com uma realidade em que há grande quantidade de processos envolvendo a mesma matéria, é fundamental que seja aplicado o princípio dos recursos repetitivos por questões de maior segurança jurídica e previsibilidade, sublinha o consultor jurídico e coordenador da CTN de Assuntos Jurídicos da Abrapp, Luiz Fernando Brum. Ele lembra que sempre que é firmada jurisprudência com base nos recursos repetitivos, o efeito imediato é a cessação de novas ações. A partir da definição trazida pelo CPC, cada tribunal deve, a rigor, ter um regimento próprio sobre os incidentes de uniformização de jurisprudência, mas nem todos o fizeram ou, se o fizeram, não foi em casos de Previdência Complementar, destaca Linhares. Para tentar mapear melhor a situação, a CTN está preparando, por meio de trabalho desenvolvido pelas diversas Comissões Técnicas Regionais, um levantamento de todos esses incidentes. “No STJ e no STF já monitorávamos isso pelos efeitos repetitivos que poderiam ocorrer, mas com as disposições do novo CPC é preciso que também fiquemos atentos ao entendimento na primeira instância”, lembra a advogada. “Já tivemos diversas decisões importantes para o sistema em recursos repetitivos no âmbito do STJ e isso reflete positivamente nas demais instâncias”, observa Brum, mas a CTN decidiu solicitar aos membros das Comissões Técnicas Regionais que façam pesquisas em suas regiões para avaliar como está o entendimento dos tribunais regionais e estaduais tanto na justiça comum quanto na justiça do trabalho. Com essas informações apuradas, será possível definir uma linha de atuação estratégica a partir do êxito obtido nos tribunais superiores. “A preocupação é com as matérias que possam ser resolvidas nas instâncias regionais e estaduais porque ainda há um número elevado de ações ajuizadas e o monitoramento da situação pelas EFPCs precisa ser constante”, explica o advogado. Entre os casos de efeito de recursos repetitivos em que já houve jurisprudência firmada em assuntos relativos à Previdência Complementar fechada, Adacir Reis destaca o debate em torno da cesta- -alimentação, de 2011, que colocou em questão os conceitos de contrato civil previdenciário e do custeio dos planos de benefícios. No caso, aposentados requeriam a incorporação do chamado “auxílio-cesta-alimentação” aos benefícios previdenciários, mas o STJ reviu sua jurisprudência no assunto e decidiu que a incorporação era indevida. “A consagração da tese veio por meio de recurso repetitivo que fixou a jurisprudência e reconheceu que é preciso observar o que está escrito no contrato civil previdenciário”, explica Reis. O STJ entendeu que as regras do Regime de Previdência Complementar não se confundem com as do Regime Geral de Previdência Social. Esse entendimento considerou que, se os recursos pleiteados pelos participantes ou assistidos de um plano para incorporar a cesta-alimentação não estão previstos no contrato previdenciário, isso significa que não houve custeio e, portanto, se a Justiça decidisse pelo pagamento obrigatório poderia comprometer o equilíbrio atuarial do plano. Outro processo relevante logo em seguida foi o do “abono”, em que se requeria a sua incorporação aos benefícios previdenciários. O argumento utilizado foi o da paridade entre participantes ativos e inativos dos planos de benefícios. Nesse caso, pontua Reis, foram firmadas duas teses: a primeira delas diz que a entidade só pode pagar benefício se ele estiver previsto em seu regulamento e a segunda estabelece que isso deve ser feito sempre com prévio custeio. A consagração desse entendimento ocorreu em maio de 2014 e o acórdão, em sede de recurso repetitivo, fixou as seguintes teses: 8 Tese A: “é vedado o repasse de abono e vantagens de qualquer natureza para os benefícios em manutenção, sobretudo a partir da vigência da Lei Complementar nº 108/2001 (…)”; 8 Tese B: “não é possível a concessão de verba não prevista no regulamento do plano de benefícios de previdência privada, em razão da previdência complementar ter como por pilar o sistema de capitalização, que pressupõe a acumulação de reservas para assegurar o custeio dos benefícios contratados, em um período de longo prazo”.

Entre as decisões recentes, Luiz Fernando Brum enfatiza duas delas. A primeira é aquela que consagrou o entendimento de que os participantes dos planos de benefícios patrocinados por entidades da administração pública devem obrigatoriamente ser desligados do emprego junto à patrocinadora para se tornarem elegíveis a um benefício de prestação programada e continuada. “Algumas entidades de grande porte tiveram problemas com isso porque as pessoas ingressavam em juízo mesmo antes de se desligarem. O STJ decidiu, em repetitivo, que é preciso haver a cessão do vínculo com o patrocinador”, explica Brum. A segunda decisão diz respeito à autonomia da Previdência Complementar fechada em relação à previdência pública no caso da previsão de reajuste no mesmo nível para os dois regimes. O julgamento de repetitivo consagrou essa autonomia, sublinha Brum. O debate sobre o tema, em que a Abrapp entrou como “amicus curiae”, colocou em questão a concessão ou não do “aumento real” utilizando o argumento de que os reajustes reais concedidos aos beneficiários do INSS deveriam ser incorporados pelos planos fechados, lembra Adacir Reis. O entendimento do STJ foi de que o sistema tem regramentos próprios e não se pode aplicar o mesmo aumento do Regime Geral à revelia do custeio dos planos de benefícios e do que diz o contrato. Mais uma vez, foi firmada a jurisprudência. A discussão em torno da aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) ao sistema de Previdência Complementar fechada também precisa ser lembrada em termos de jurisprudência porque ela culminou no entendimento de que o contrato previdenciário é especial e não pode ser regido pelo CDC. “Esses contratos são regidos pelo princípio do mutualismo e o participante do plano não é um consumidor como outro qualquer, até porque ele participa da gestão.” Esse tema, diz Reis, mostrou que há todo um microssistema normativo e isso levou à edição de súmula pelo STJ, que tem efeito para todos os casos. Processos pendentes Entre os temas ainda em debate que poderão ir para recurso repetitivo está o caso de migração de participantes entre planos. “A migração traz ônus e também alguns bônus, já que os planos têm diferentes cálculos de reajustes e outras características, mas o que está sendo requerido nesses processos é que sejam anulados apenas os ônus da transferência e mantidos todos os bônus”, explica Reis. O argumento das EFPCs mostra que houve um “vício de consentimento” dos participantes e o tribunal entendeu que é preciso de fato mostrar esse vício, ou seja, se for para anular os ônus também deverão ser anuladas as vantagens. “Agora esse tema foi para julgamento com efeito de recurso repetitivo e, se for confirmado o entendimento, irá valer para todos os casos que envolvem o mesmo problema.” Os processos que estão pendentes poderão firmar o entendimento do Judiciário sobre uma série de questões muito importantes, como a da migração entre planos, reforça Luiz Fernando Brum. Nesse caso, o Recurso 1.555.488/MS, que aguarda julgamento, a discussão questiona se é cabível a aplicação da súmula sobre resgate ou se ela deve ser afastada. Já o recurso repetitivo 1.435.831/RS discute uma definição sobre qual deverá ser o regulamento aplicável, aquele no momento da entrada do participante no plano ou o que vigorar na data de sua aposentadoria. O acompanhamento de alguns desses recursos pela Abrapp no STJ agora deverá ser fortalecido com o trabalho da CTN no âmbito do CPC e dos IRDR, avalia Brum. Entre os temas complexos que ainda não foram apreciados, Reis lembra a questão dos critérios de reajustes, originados em diferentes planos econômicos no passado, e uma série de questões específicas de ordem tributária, como PIS/Cofins. Ele destaca que até o final do ano devem ser julgados com efeito de recursos repetitivos dois temas da maior importância: o artigo 17 da Lei Complementar 109, que regula as alterações nos regulamentos dos planos, e processos que discutem o conceito do contrato civil. Sensibilidade regional “Por conta da lei e do novo CPC, temos conseguido evitar recorrências e firmar várias teses, ou seja, a jurisprudência está se tornando favorável”, afirma Reis. Nos tribunais regionais, para os quais o CPC trouxe o IRDR, os efeitos de vinculação ainda são incertos, acredita o advogado. Para ele, o principal resultado dos recursos repetitivos será mesmo no STJ. Na avaliação de Patrícia Linhares, a dificuldade de despertar a sensibilidade dos tribunais regionais está muito ligada ao fato de que as demandas da Previdência Complementar, embora tenham um volume expressivo, não são relevantes no cenário total do Judiciário porque atingem grupos específicos de pessoas. “Isso tem levado a um certo esvaziamento dos casos e IRDR”, diz ela. No Estado da Bahia, exemplifica Linhares, há atualmente cinco casos de IRDR, mas nenhum deles versa sobre Previdência Complementar. Enquanto o STJ tem números relevantes desde 2009, com algumas centenas de processos envolvendo teses do sistema, regionalmente os desembargadores ainda vêm de forma limitada a importância dessas teses, não havendo, ainda, uniformidade de compreensão. Para melhorar essa sensibilidade, Linhares defende que os advogados das EFPCs façam um acompanhamento constante, até porque quando um caso for julgado pelo tribunal local como incidente repetitivo, a Abrapp pode entrar como “amicus curiae”. A discussão dos temas em primeira e segunda instâncias é muito importante, ressalta Adacir Reis, uma vez que é preciso mostrar desde o primeiro momento e produzir provas, laudos atuariais e outros documentos que serão essenciais se o caso chegar aos tribunais superiores.

Fonte: Revista da Previdência Complementar (Abrapp)